sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Essa Vaga não é sua nem por um Minuto - Mirella Prosdócimo ( Minha Musa Inspiradora :)

Um sonho possível

Existem pessoas capazes de nos transformar. E se você prestar bem atenção, geralmente elas não fazem isso gritando, impondo suas crenças, falando demais. Essas pessoas especiais despertam o que temos de melhor com o exemplo.
Por Luís Fernando Carneiro


Mirella Prosdócimo
Reprodução do texto na Integra / Fonte : Revista Viver http://www.revistaviver.com.br/blog/?p=843


Os braços e pernas de Mirella Prosdóscimo não se mexem. Há 18 anos ela precisa da cadeira de rodas e de pessoas a sua volta para fazer coisas que nos parecem as mais simples do mundo. Tomar água, almoçar, coçar o rosto ou virar de lado na cama. Ainda que com todas as desculpas do mundo para se abandonar no comodismo, Mirella reorganizou sua vida, formou-se em Letras, especializou-se em Educação Especial e Inclusão nos Estados Unidos e, quando compreendeu sua missão, voltou ao Brasil para fundar a Adaptare, uma consultoria especializada para a nova realidade de inclusão.
É no escritório adaptado, na companhia da sócia Tatiana Moura, que Mirella se mostra um furacão. Orientando os assistentes, respondendo e-mails com o auxílio de um software especial ou avaliando minuciosamente cada projeto dos clientes, ela cria asas com o objetivo de viabilizar direitos básicos como o de ir e vir, negado historicamente no Brasil por conta de calçadas, casas e empresas sem um projeto básico de acessibilidade. E é claro que as maiores barreiras não são as arquitetônicas. Há três anos Mirella participa da organização de um seminário sobre pessoas com deficiência, na Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP), e sonha com um mundo em que as pessoas com qualquer tipo de limitação não sejam vistas como “coitadinhas”, mas como gente capaz de ser e de viver feliz.
O censo de 2000 apontou um contingente de 24,5 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência, ou seja, 15% da população. Pensando bem, tem muita gente sonhando o mesmo sonho.

Viver Curitiba – Como foi seu acidente?

Mirella Prosdóscimo – Foi em 92, voltando da praia. Estávamos chegando em Curitiba, meu tio estava dirigindo, veio um outro carro com  uma pessoa alcoolizada no volante e nos jogou de cima do viaduto da Sanepar. O carro capotou e eu fui a única pessoa que se machucou, fraturando a coluna na altura do pescoço. Minha lesão foi bem alta e com isso perdi todos os movimentos do pescoço para baixo. Eu tinha 17 anos e demorei 10 anos para voltar a estudar e retomar as rédeas da vida.

Como foram os dias seguintes?

Esse período no hospital foi um pouco nebuloso para mim. Eu não me lembro bem, até porque estava com muita medicação. Eu passei por uma cirurgia, fiquei três meses no hospital, muito tempo na UTI. E não recebi a notícia: “você está tetraplégica”. Eu nunca passei por isso, assim como acontece em novela. Fui acordando aos poucos de toda a medicação e não sabia o que estava acontecendo. Acredito que essa demora de 10 anos para retomar a minha vida foi porque eu não tinha um entendimento disso. Eu ficava no “amanhã eu vou” e acreditava piamente que não era uma situação permanente e que em poucos meses eu recuperaria os meus movimentos. Ninguém chegou para mim e falou:  “Olha, Mirella, você lesionou sua medula, perdeu todos os seus movimentos, é para sempre e a gente vai ter que lidar com isso”.

E como foi caindo a ficha?

Eu sempre fui muito protegida pela minha família. Tenho três irmãos, minha mãe, meu pai,  e, se deixar, todos me mantém numa bolha mesmo. Isso é normal. Mas a ficha foi caindo quando percebi que as pessoas que estavam a minha volta começaram a retomar as suas vidas; minha irmã casou e teve filho, a outra irmã casou, e cada um foi seguindo a sua vida. Aí eu disse: “Meu Deus, eu preciso seguir com a minha também, chega de ficar esperando!”.

E como você lidou com isso?

Isso não aconteceu de uma hora para outra. Para a minha família também. A minha mãe até hoje acredita que vai acontecer um milagre, seja da medicina, seja de Deus, e que daqui alguns anos eu vou estar me movimentando de novo, seja só braço, seja braço e perna, seja o que for. Eu acho que o ser humano tem isso até como uma autoproteção, para a gente não ter esse sofrimento tão abrupto. A gente vai se preparando aos poucos. Eu não tive esse momento de “meus sonhos acabaram”. Eu fui aprendendo a conviver com essa nova realidade e hoje eu faço absolutamente tudo.

Como foram os seus estudos?

Fiz o terceirão em casa e prestei o vestibular, mesmo não acreditando que conseguiria. Mas depois, na faculdade de Letras, fui muito bem recebida e dali em diante a mudança foi total. Lá eu era uma das mais festeiras. Antes do acidente eu sempre fui muito festeira e continuei sendo. Depois fiz uma especialização nos Estados Unidos, que abriu muito a minha cabeça sobre acessibilidade e principalmente as condições de respeito com pessoas com deficiência. Como os americanos passaram por guerras, eles não vêem os seus deficientes como coitadinhos.

Qual a principal coisa que mudou na sua vida com o acidente?

Muda muita coisa, até porque eu era uma adolescente, tinha 17 anos. Acho que o sofrimento acaba trazendo um amadurecimento mais rápido. E todo esse processo, por mais que tente levar minha vida mais leve possível, mais normal possível, é uma situação muito limitadora. Eu preciso de ajuda o tempo inteiro, para absolutamente tudo. Então, lógico que tem momentos que eu paro para pensar, “Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?”. Eu me pergunto o por quê de tudo isso.

Mas eu acredito que tenha uma explicação, que eu tenha realmente que passar por tudo isso para ter um amadurecimento, um crescimento.

Qual sua relação com Deus?

Eu sou espírita, então eu acredito que a vida não acaba aqui. Eu acredito que tem toda uma história de antes, de hoje e de depois também. O que eu venho tentando fazer é realmente ser uma pessoa melhor, tentando trazer uma consciência maior para as pessoas, para que olhem para a diversidade com naturalidade. Porque somos pessoas como quaisquer outras, com os mesmos sentimentos, vontades, os mesmos medos.
Você tem um furacão dentro de si e seus braços e pernas não respondem. Como você convive com isso?

O ser humano tem uma capacidade de adaptação muito rápida. Hoje em dia eu não paro para pensar na minha situação. Eu esqueço muitas vezes que eu dependo das pessoas. Então eu acordo e penso: “eu tenho milhões de coisas para fazer, tenho que ligar para fulano, tenho que correr para tal lugar….”. Mas na verdade quem faz tudo isso são as meninas.

É como se as suas assistentes fossem os seu braços?

Na verdade elas são os meus braços mesmo, elas fazem tudo para mim. Mas a cabeça, quem está aqui no comando sou eu. Graças a Deus a gente acaba se adaptando. Algumas vezes rapidamente, outras vezes nem tanto… o meu “rápido” durou 10 anos, mas a gente acaba se adaptando.

Você exige muitos cuidados?

São três pessoas que se revezam de segunda a sexta e, aos finais de semana, duas pessoas, uma 24 horas no sábado e outra no domingo.

O fato de você ser de uma família tradicional, com condições para manter a sua autonomia ajuda…

Eu sei que eu sou uma pessoa privilegiada e que tenho possibilidades que a maioria da população não tem e agradeço a Deus por isso. A minha parte é tentar oferecer mais condições de acesso e dignidade para quem não tem as mesmas condições que eu.

Tenho certeza que muitas pessoas vão ler essa entrevista e parar para pensar na vida…

Muitas pessoas param para pensar: “ai, se fosse eu, o que eu faria?”. Eu não me vejo como uma heroína. Realmente enfrentei muitas batalhas na minha vida, continuo enfrentando e pelo resto da minha vida vou enfrentar, mas todo mundo tem os seus problemas, as suas dificuldades. O que eu aprendi com tudo isso é que dificuldades, problemas, todo mundo vai ter sempre. A gente tem que saber levar da melhor maneira possível e é isso que eu tento fazer. Quando eu acordo de manhã eu não paro para pensar: “o que eu vou fazer da minha vida hoje?”. Não, o dia está ali, eu tenho coisas para fazer e vou tocar a minha vida da melhor forma que eu puder.

E se você tivesse seus movimentos de volta por um dia, o que gostaria de fazer?

Puxa… (emocionada) é difícil dizer, porque tem tantas coisas que eu morro de vontade de fazer! Por exemplo, botar os pés na areia, sentir o mar. Porque além de ter perdido os movimentos eu perdi também a sensibilidade no meu corpo. Então, se você de repente der um beliscão aqui na minha perna, eu não vou sentir. E da mesma maneira eu não sinto um carinho, alguém passando a mão no meu braço. Às vezes tenho um aperto no coração, assim: “ai, que vontade de dar um abraço naquela pessoa!” ou “ai, que vontade de, sei lá, sair correndo, de dançar!”. Tudo isso eu sou impossibilitada de fazer. E tenho vontade de fazer tudo isso, nunca vou perder. Mas é aquela questão, a gente se acostuma… com coisas boas, com coisas ruins. Eu tenho mais experiência nessa vida sem andar do que antes. Porque já se passaram 18 anos desde os meus 17. Essa é a minha realidade hoje.

Qual a sua vaidade como mulher?

Bem… isso eu nunca perdi (risos). Eu já era muito vaidosa antes do acidente e continuo sendo. Eu nasci com isso. É uma característica que vem de família, a minha mãe também é muito vaidosa e eu nunca perdi essa vontade de estar bem, de estar bonita, até porque eu acho que é importante para mostrar para as pessoas que não é porque eu sou uma pessoa com deficiência que eu não vou me cuidar, querer ser bonita, querer ser uma pessoa agradável aos olhos.

Como você faz compras?

A Luciana (personagem de Alinne Moraes na novela “Viver a Vida”) passou por uma situação dessa. Ela foi ao shopping para fazer compras e o provador não era acessível, não entrava cadeira de rodas. Eu passo por isso diversas vezes. Já aconteceu de eu ficar de fora da loja e alguém entrar, pedir a blusa para mim e trazer para fora da loja porque a cadeira não passava na porta.

A personagem Luciana, na novela, retratou bem a sua vida?

Sim, eu me vi ali muitas vezes. Eles foram muito bem assessorados. Toda adolescente tem o sonho de casar, de ter filhos. É claro que eu também tenho esses sonhos. Ter filhos já é algo que eu não sonho tanto. Eu sonhei com isso durante muito tempo, mas hoje eu vejo que eu não vou ser infeliz se eu não tiver filhos. Hoje estou muito envolvida no meu trabalho, que é bem mais que um simples trabalho, é um desejo de levar a conscientização para as pessoas, mostrar que não é um bicho de sete cabeças conviver com uma deficiência, seja ela qual for. E hoje em dia eu posso dizer que eu sou uma pessoa muito feliz. Eu tenho o carinho de pessoas que, se eu não tivesse a deficiência, eu não teria.

Tem namorado?

Nessa questão de relacionamento eu também posso dizer que eu sou plenamente realizada. Eu tenho uma pessoa que eu gosto, tenho meu namorado e… (pausa) estou bem. (risos).

Então isso não é só coisa de novela?

Não, acontece mesmo. Lógico! (mais risos)

O que uma pessoa deve ter para namorar uma pessoa com deficiência?

Cabeça aberta. Tem que me ver como uma mulher como outra qualquer. Não quero ser tratada como coitadinha, como vítima, não quero ser superprotegida de novo. Já fui durante muito tempo e hoje quero ser vista como uma mulher como qualquer outra.

É o desejo de todas as mulheres?

É isso. Que seja feliz, que sofra, mas que tenha uma relação verdadeira. E hoje, graças a Deus eu tenho um relacionamento assim. A gente briga que quase se mata, mas isso é comum em qualquer relação, né? Ele não fica passando a mão na minha cabeça, até porque eu não quero isso de forma alguma. Deus me livre! A última coisa que eu queria na vida é ter uma pessoa do meu lado por pena.

Você vai ao cinema, sai com os amigos?

Sim, tudo normal, levando em consideração que os meus “bracinhos” têm que ir junto.

Deve ser muito difícil ver filme daquele lugar, ali pertinho da tela, não?

É sim. Mas foi o espaço que sobrou. Por que não nos dão a possibilidade de escolha, deixam um único lugar e que os deficientes se contentem com isso. É aquela história, parece que é sempre um favor que estão fazendo para a gente. E não é um favor, é obrigação.

Muitas empresas utilizam o apoio aos deficientes apenas como marketing?

No começo não é nem marketing, é a necessidade de cumprir com a obrigação legal. Esse acaba sendo o primeiro passo. Mas depois disso acaba havendo uma conscientização. Porém, 99% das questões começam por conta da obrigação legal.


Existem empresas que fazem um primeiro contato com você por obrigação, mas depois se apaixonam pela causa?

Sim, existem muitos casos. Há empresas que levam a causa muito além do que precisaria porque é uma questão que acaba apaixonando. A acessibilidade é um bichinho que morde e você leva para o resto da vida. Sem querer começa a prestar atenção em tudo, nas calçadas, nas ruas, em lugares que não têm rampa, etc.

Você deve inspirar muita gente, não?

Espero que sim. A minha vontade é realmente ser vista como um exemplo. Quero também que as pessoas percebam que todo mundo vai ficar velho, que acabarão tendo limitações para ir ao banheiro, para caminhar, para deitar na cama. Se o lugar que a gente mora já estiver preparado para receber essas adaptações, facilita muito.
Você se incomoda com a falta de sensibilidade das pessoas para essa causa?
Um pouco, mas eu também vivi do outro lado. Até os 17 anos eu não tinha deficiência, nunca tinha convivido com uma pessoa com deficiência e nem imaginava o que era uma pessoa tetraplégica. Eu também não tinha esse olhar. Se a calçada era de petit pavet, se estava com buraco, se tinha guia rebaixada, tanto fazia, porque eu não sabia qual era a importância daquilo. Então eu entendo quando essas coisas passam despercebidas pelas pessoas. A boa notícia é que hoje em dia nós somos bombardeados de informações por todos os lados e percebo que muita gente já começou a enxergar um pouco além da sua própria vida.

FOTOS:

Manoel Guimarães

CABELO E MAQUIAGEM:

Ronaldo Ramos

Com um delicioso sorriso no rosto, muito trabalho e foco em cada um dos seus projetos, Mirella vai aos poucos mostrando que este é, sim, um sonho possível. Dia após dia ela deixa para trás o velho clichê “pobre menina rica” e se transforma em uma mulher diferente, jamais normal.

“Normal” é algo que não combina com Mirella. Através dos seus olhos somos capazes de perceber as construções, as ruas e as pessoas de uma maneira diferente. Ao entrar na sua intimidade somos convidados a observar nossos passos, repensar relações e encontrar também a nossa missão por aqui.